Ato II
- Por Tassis Frois
Chovia bastante. O caminho estava custoso. O verão sempre traz a colheita, mas também a chuva. Muita chuva. O chiar das rodas, já encharcadas,da carroça de carvalho, denunciavam o quão custoso estava sendo aquela caminhada. Mas todo aquele sacrifício valeria à pena. Paramos um pouco, já às margens da estrada quando uma patrulha de cavaleiros nos abordou. Pediram documentos, que a maioria não tinha, depuseram-nos de nossas poucas armas (uma espada na verdade) e "gentilmente" ofereceram escolta para a bastilha mais próxima.
Meu pai, receoso de minha segurança, ordenou-me ficar o tempo todo ao lado Dele, já que como ex-militar do exército daquela, "província", poderia tentar encontrar algum conhecido, que pudesse nos oferecer uma mão amiga, ao invés daquelas pontas de lanças dos cavaleiros.
Assim que chegamos à tal bastilha, o céu pareceu querer desabar sobre nossas cabeças, e uma tempestade anunciava-se com fortes rajadas de vento, chicoteando a chuva sobre nossos lombos, ao som do tambor grave e potente dos trovões. Claro que a iluminação para aquela "festa" estava garantida, com os sucessivos relâmpagos.
Ao finalmente estar em um lugar onde a chuva não nos castigasse, fomos mais uma vez pilhados, e todos os nossos pertences foram-se com aqueles homens, incluindo nossos bornais. Agora entendi o porque de tanto ódio por parte Dele, quando apenas citava as palavras "De Varson".
Passamos a noite ali. Deixaram-nos lá, como se alguém fosse nos atender, entretanto os portões foram fechados, nos trancando naquele antro enorme. Ao menos tínhamos cobertura para nos proteger da chuva, entretanto os gritos e cantorias provenientes da Taverna ecoavam reverberantes, encontrando as altas paredes de pedra e concreto maciço daquele lugar. Surpreendido fiquei em notar, que todo aquele barulho provinha de uma pequena abertura retangular, já quase ao teto daquele lugar. Nunca entendi como tanto barulho poderia passar por tão pequeno espaço.
Dormimos, ou melhor, passamos toda a noite ali. Aconchegamo-nos uns aos outros, para driblar o frio, após torcer as roupas encharcadas. Devo confessar, que consegui descansar, finalmente, após quatro longas semanas encolhido no fundo de uma carroça puxada por bois, dividindo espaço com um caixote, que rangia mais que todo o resto da caravana. Ouso dizer, que foi aquele caixote infeliz, quem nos dedurou aos cavaleiros, por tamanho barulho que fazia enquanto ganhávamos os palmos da estrada de chão batido.
Então ele apareceu. Velho, gordo, ranzinza e com cara de poucos amigos. Também pudera, com aquela aparência, e com aquele odor, ninguém em sã consciência seria amigo daquela criatura. Foi extremamente grosso no trato, tendo sempre dois guardas à sua retaguarda, que mais pareciam duas grandes peças de armadura com espadas. Queriam saber de onde éramos, o que queríamos, para onde iríamos, o esperado.
Meu pai tomou a frente, cumprimentando-o cordialmente. Algo bem inusitado ao meu ver, já que as lendas contavam estórias, de que num campo de batalha, ou numa situação adversa qualquer, meu pai sempre entrava em frenesi, atacando tudo e todos com sua longa espada de duas mãos, herdada de meu avô. (Meu avô... Este sim era um verdadeiro berserker em combate. Ao menos era o que as suas estórias de guerra diziam.)
Mas para minha surpresa, Sir Therion, ou como gostava de ser chamado, o Irmão Therion, foi cordial, sensível e tenro no trato. Disse algumas palavras num idioma, que eu não conhecia, nem mesmo sabia que ele dominava aquele idioma estranho, e algo ainda mais surpreendente, que ver meu pai falar outro idioma e ser manso com os que nos trataram mal, aconteceu. Aquele homem gordo, fedorento, ranzinza, de voz irritantemente rouca, se colocou de joelhos diante de meu pai, beijando-lhe suas mãos.
Ninguém entendeu aquilo, nem mesmo seus homens, que armaram uma postura de combate, mas foram desarmados sem golpes, dada a ação daquele gordo.
Aquela voz irritante, tornou-se ainda mais irritante, quando, naquele idioma estranho, ele gritou algo. Momentos após os gritos, os cavaleiros que nos tomaram cativos apareceram. Todos os quatro se ajoelharam, com expressões de extremo temor, um deles até mesmo chorava, o que muito me admirou. E depois de vários berros (como já se não bastassem os gritos) os quatro saíram correndo, voltando pouco tempo depois com todas os nossos pertences.
Eu realmente estava sem entender nada, até que Ele saiu de trás, retirando o capuz, que cobria sua cabeça enquanto lentamente se dirigia às escadas. Se apresentou, falando também naquele idioma estranho. O velhote gordo não contou tempo para se jogar ao solo, clamando por algo pelo que entendi, já que a sua voz irritante agora parecia querer ser acompanhada de lágrimas.
O cocheiro que tocava os bois de minha carroça olhou para todos, e riu. Aquele velho homem magricelas sempre sorria, mas aquele riso era diferente. Um riso, que pude notar em alguns outros rostos. Só então entendi, de fato, o que meu avô sempre me dizia, quando eu era menino; "O homem só consegue alcançar, aquilo que ele compreende."
Todos começaram a fazer reverências à ele, e eu, é claro, sem entender nada, apenas acompanhei os gestos, que via os outros a fazer. Mais algumas palavras Dele, naquele estranho idioma, e todos foram chamados para fora daquele lugar. Por falar naquele lugar, só agora, com a luz matinal, que pude notar as cadeias. Estávamos num calabouço enorme. Dormimos ao lado de corpos e ossos, além de baratas e ratos. Tive arrepios só de olhar aquela cena, e fui um dos que tomou a dianteira para as escadarias.
Ao sairmos daquele lugar, que tudo mais uma vez se fez claro. Estávamos numa verdadeira fortaleza. Soldados por todos os lados, armados até os dentes, trajados de cotas de malha, armaduras de couro e placas de metal reluzente. Escudos visivelmente gastos em batalhas, mas ainda brasonados, completavam a ornamentação nos braços de alguns homens, que faziam patrulhas na base da muralha. Falando em muralha, nunca em toda minha vida havia visto um muro. Ouvia histórias de como eram, mas nunca havia visto um de perto, e vislumbrar aqueles paredões colossais meu deu tonturas e calafrios, só em imaginar uma queda daquela altura.
Entretanto, foi ainda tentando me recuperar das tonturas que a vi. Eu não sei se me recuperava ou piorava, pois observá-la me fez perder o chão. Os raios solares sobre seu rosto lindo, que passavam pelas frestas nas nuvens, tornaram aquela visão ainda mais divina. Longos cabelos ondulados da cor do fogo, Olhos verdes, como a água profunda do oceano em um dia de primavera, algumas sardinhas nas bochechas rosadas, que pareciam tão apetitosas quanto maçãs maduras, mas ainda não eram tão apetitosas quanto aqueles lábios de tom avermelhado e traços finos. Aqueles lábios... Pensei estar vendo uma miragem, dada a fome, já que não havíamos comido nada no dia anterior, por ter sido tomados em cativeiro antes do almoço. Pensei estar vendo um anjo, mas era realmente real. Quando o olhar dela encontrou o meu, tentei disfarçar, mas já era tarde. Um riso tímido eu pude notar ser desenhado naqueles lindos lábios, e as bochechas dela também corarem. Claro que também ri, mas tentei esconder, olhando em volta para tentar ver se alguém percebeu.
Mas, não estávamos, ainda, no paraíso, e a sinfonia do inferno parecia querer se fazer presente no timbre da voz daquele velho gordo. Ele gritou algo, e em seguida a palavra "Gloria". Ela respondeu e pude ouvir sua voz. Uma sinfonia divina para meus ouvidos. Uma coisa pude notar, ela o chamava de "papatka".
"Papatka"??!!
Eu não entendia bulufas daquele idioma, mas lembrei de um episódio no rancho dos Campos, onde ouvi aquela palavra pela primeira vez. Significava "Pai". "Pai"???!!! Como um demônio gordo, fedorento e horripilante pode ser o progenitor de um anjo celestial?! Mas aí veio outro pensamento a me arietar os portões da mente; "O nome dela é Gloria!"
Aquele pedaço de cruz credo não poderia ter escolhido nome mais adequado àquela, que para mim agora, era a mais bela criatura em todo o mundo. E então, outro aríete em minha mente. Algo que eu não queria nem imaginar em ouvir dos outros, agora ribombava como as ondas do mar o faz, nas pedras da costa. Eu estava apaixonado. Perdidamente apaixonado... Mas isso não era a parte ruim. As pontas das pedras apareceram quando percebi, que estava apaixonado pela filha do demônio gordo...
Continua...